jueves, 26 de febrero de 2009

WALT WHITMAN


Walt Whitman
Poemas
Walt Whitman nasceu em 1819, em West Hills, estado de Nova York. Era neto de camponeses e filho de um carpinteiro instalado em Brooklyn, então uma simples aldeia situada nos arredores de Nova Iorque. Criança solitária, passava o tempo a vaguear pelas colinas ou a andar de barco pela costa oceânica, tendo depois exercido uma infinidade de profissões: tipógrafo, mestre-escola, director de um jornal diário (o Aurora), operário agrícola, enfermeiro, empregado de escritório. Percorreu Nova Iorque ao lado de um cocheiro da Broadway, e aí, curioso de tudo, descobriu a multidão, o music-hall, o teatro popular e a ópera italiana. Leu Dante em plena floresta e a Ilíada a bordo, em pleno Atlântico. Recebeu a influência de Robert Owen, de Fanny Wright, de Ralph Waldo Emerson, e do movimento Quaker. Deu conferências, escreveu notícias para a imprensa, frequentou a boémia literária, o meio dos operários das docas. Desceu o Ohio e o Mississipi, contactou índios no mercado francês de Nova Orleães, conheceu breves e fogosos amores na Luisiana.
De regresso ao norte em 1854, definiu, num longo e permanentemente inacabado poema, aquilo que pretendia que viesse a ser a bandeira de um novo espírito. Os dogmas cristãos pareciam-lhe caducos e ele sentia-se, ou julgava sentir-se, na posse de grandes e inteiramente novas verdades que queria comunicar ao mundo e em 1855, publicou, pagando a edição do seu próprio bolso, o primeiro canto de “Leaves of Grass” (Folhas de Erva), oitocentos exemplares que na altura não conseguiu vender e que lhe valeram a maledicência e palavras indignadas da crítica: o tom era demasiado livre, demasiado novo, insuportável para a sensibilidade dominante. A obra, repudiada pelos críticos de então, introduzia o verso livre e dava tratamento poético a coisas e factos do quotidiano, como o progresso técnico e o sexo. Em 1871 expôs os seus pontos de vista políticos no ensaio Democratic Vistas, que teve grande repercussão. Entretanto, uma carta do filósofo Emerson animou-o, e inaugurou também uma longa amizade. Durante anos, “Leaves of Grass” foi assim aumentando constantemente. Whitman cantou aí o cedro, a tempestade, o futuro, a democracia, os barcos de Brooklyn, os índios, as cidades, as estradas, os grandes espaços, a América, "a terra destinada a se percorrida, unida por uma rede...".
Em 1873 uma doença vascular deixou-o parcialmente paralítico.
Passou então a morar em Camden, Nova Jersey, com a família, continuando a escrever, sempre obcecado pela sua única obra (a edição definitiva, a nona, contém muitos milhares de poemas), até ao fim da vida. Provavelmente sem suspeitar do impacto que esta viria a ter no século que se aproximava.
Em fins de 1891 publicou a última edição de “Leaves of Grass” e morreu poucos meses depois.
A influência de Walt Whitman, um corajoso experimentalista tanto na vida pessoal como na sua arte, tem sido imensa, quer seja na prática de muitos activistas sociais quer na obra de numerosos poetas e de outros escritores do século XX.
Revolucionário na forma e na temática da sua poesia, defendia a abolição da escravatura, os direitos da mulher, o amor livre e o desenvolvimento tecnológico.
Walt Whitman foi um dos maiores poetas da América e considerado um bardo ao serviço da democracia. Ninguém como ele até então tinha enaltecido, com versos soberbos, o regime dos Estados Unidos da América, além de ter iniciado a emancipação da literatura do seus país, do costume de imitar os europeus.
O poeta exerceu um profundo e merecido fascínio em Fernando Pessoa (que lhe dedicou a «Saudação a Walt Whitman»).
A UM HISTORIADOR
Você, que fala de coisas passadas,
tem explorado só o lado de fora,
as superfícies das raças,
a vida como ela se deixa ver,
tratando o ser humano
como uma criatura de políticos,
agregados, governantes e sacerdotes...
Eu, habitante dos Alleghanies,
tratando-o como ele de fato é
em seus plenos direitos,
tomando o pulso da vida
que raramente se deixa entrever
(o grande orgulho do homem consigo mesmo):
cantor da Personalidade, rascunhando
o que ainda está por vir
- o que eu projeto é a história do futuro.
**
ENQUANTO EU LIA O LIVRO
Enquanto eu lia o livro, a famosa biografia:
- Então é isso (eu me perguntava)
o que o autor chama
a vida de um homem?
E é assim que alguém,
quando morto e ausente eu estiver,
irá escrever sobre a minha vida?
(Como se alguém realmente soubesse
de minha vida um nada,
quando até eu, eu mesmo, tantas vezes
sinto que pouco sei ou nada sei
da verdadeira vida que é a minha:
somente uns poucos traços
apagados, uns dados espalhados
e uns desvios, que eu busco
para uso próprio, marcando o caminho
daqui afora.)
**
AO COMEÇAR MEUS ESTUDOS
Ao começar meus estudos,
me agradou tanto o passo inicial,
a simples conscientização dos fatos,
as formas, o poder de movimento,
o mais pequeno inseto ou animal,
os sentidos, o dom de ver, o amor
- o passo inicial, torno a dizer,
me assustou tanto,
e me agradou tanto,
que não foi fácil para mim passar
e não foi fácil seguir adiante,
pois eu teria querido ficar ali
flanando o tempo todo,
cantando aquilo
em cânticos extasiados.
**
PRECURSORES
Como são eles colocados sobre a terra
(surgindo a intervalos),
como são caros e terríveis para o mundo,
como eles se habituam a si mesmos
assim como aos demais
- que paradoxo chega a parecer
o tempo deles -
como as pessoas respondem a eles
ainda que os não conheçam,
como algo de intransigente persiste
na sorte deles em todos os tempos,
como todos os tempos
escolhem mal as coisas
com que os adular e os recompensar,
e como o mesmo preço inexorável
há de ser pago ainda
pela mesma grandeza encomendada.
**
NÃO ME FECHEM AS PORTAS
Não me fechem as portas, orgulhosas
bibliotecas, pois justamente o que estava faltando
em suas prateleiras apinhadas,
é o que venho trazer
- mal acabando de sair da guerra,
um livro que escrevi:
pelas palavras do meu livro, nada;
pelas intenções, tudo!
Um livro à margem,
sem nada a ver com os restantes,
e que não pode ser sentido só
com o intelecto.
Vocês, porém, com seus silêncios latentes,
a cada página hão de estremecer
maravilhadas.
**
POETAS DE AMANHÃ
Poetas de amanhã: arautos, músicos,
cantores de amanhã!
Não é dia de eu me justificar
e dizer ao que vim;
mas vocês, de uma nova geração,
atlética, telúrica, nativa,
maior que qualquer outra conhecida antes
- levantem-se: pois têm de me justificar!
Eu mesmo faço apenas escrever
uma ou duas palavras
indicando o futuro;
faço tocar a roda para a frente
apenas um momento
e volto para a sombra
correndo.
Eu sou um homem que, vagando
a esmo, sem de todo parar,
casualmente passa a vista por vocês
e logo desvia o rosto,
deixando assim por conta de vocês
conceituá-lo e prová-lo,
a esperar de vocês
as coisas mais importantes.
**
O Próprio Ser Eu Canto
O próprio ser eu canto:
Canto a pessoa em si, em separado
_ embora use a palavra Democracia
e a expressão Massa.
Eu canto o Corpo
Da cabeça aos pés:
Nem só o cérebro
Nem só a fisionomia
Tem valor para a Musa
_ digo que a forma completa
é muito mais valiosa,
e tanto a Fêmea quanto o Macho
eu canto.
A vida plena de paixão,
Força e pulsam,
Preparada para as ações mais livres
Com suas leis divinas
_O Homem Moderno
eu canto.
**
NESTE MOMENTO TERNO E PENSATIVO
Neste momento terno e pensativo
Aqui sentado a sós
Sinto que existem noutras terras outros homens
Ternos e pensativos,
Sinto que posso dar uma espiada
Por cima e avistá-los
Na França, Espanha, Itália e Alemanha
Ou mais longe ainda
No Japão, China ou Rússia,
Falando outros dialetos,
E sinto que se me fosse possível
Conhecer esses homens
Eu poderia bem ligar-me a eles
Como acontece com homens de minha terra,
Ah e sei que poderíamos
Ser irmãos ou amantes
E que com eles eu estaria feliz.
**
Máquina Alguma de Poupar Trabalho
Máquina alguma de poupar trabalho
Eu fiz, nada inventei,
Nem sou capaz de deixar para trás
Nenhum risco donativo
Para fundar hospital ou biblioteca,
Reminiscência alguma
De um ato de bravura pela América,
Nenhum sucesso literário ou intelectual,
Nem mesmo um livro bom para as estantes
- apenas uns poucos canto
vibrando no ar eu deixo
aos camaradas e amantes.
**
A BASE DE TODA METAFÍSICA
E agora, cavalheiros, eu lhes deixo
Uma palavra
Para ficar nas mentes de vocês
E nas suas memórias
Como princípio e também como fim
De toda metafísica.
(Tal qual professor aos estudantes
ao encerrar seu curso repleto.)
Tendo estudado antigos e modernos,
Sistemas dos gregos e dos germânicos,
Tendo estudo e situado Kant,
Fiche , Hegel,
Situado a doutrina de Platão,
E outros ainda superiores a Secretas
Buscando pesquisar e situar,
Tendo estudado bastante o divino Cristo,
Eu vejo hoje reminiscências daqueles
Sistemas grego e germânico,
Deparo todas as filosofias,
Templos, dogmas cristãos encontro,
E mesmo sem chegar a Secretas eu vejo
com absoluta clareza,
e sem chegar ao divino Cristo,
eu vejo
o puro amor do homem por seu camarada,
a atração de um amigo pelo amigo,
de uma mulher pelo marido e vice-versa
quando bem conjugados,
de filhos pelos pais, de uma cidade
por outras, de uma terra
por outra.
**
Canto 34
Agora eu conto
O que eu soube no Texas
Em minha juventude
(não vou contar a tomada de Álamo,
não escapou ninguém para contar
a tomada de Álamo,
aqueles cento e cinqüenta estão mudos
ainda em Álamo):
esta é a história do assassinato
a sangue frio
de quatrocentos e vinte moços.
Em retirada tomaram formação
De um quadrado vazio
Com as bagagens como parapeitos,
Novecentos as vidas do inimigo
Que agora os sitiava,
Nove vezes o que tinham em número
E o preço foi cobrado adiantado,
O coronel deles fora ferido
E a munição havia terminado,
Negociaram capitulação com honra
Papel timbrado e assinado,
Entregaram as armas e marcharam
Prisioneiros de guerra.
Eram o orgulho da raça dos rangers,
Inigualáveis em montaria
Rifles, canções, repastos, galanteios,
Enormes, turbulentos, generosos,
Amáveis e orgulhosos,
Barbudos, peles tostadas de sol,
Trajados à moda descontraída
Dos caçadores,
Nenhum contava mais de trinta anos.
No segundo Domingo de manhã
Foram levantados em grupo
e massacrados:
era uma linda manhã de verão,
a faina começou aí pelas cinco e meia
e às oito estava tudo terminado.
Nenhum se quis sujeitar
À ordem de ajoelhar,
Alguns tentaram inutilmente correr
Feito uns alucinados,
Alguns ficaram inabaláveis em pé,
Alguns poucos tombaram de uma vez
Com tiros na fronte ou no coração,
Os mutilados e desfigurados
ainda cavando o chão,
vivos e mortos estirados juntos
onde eram vistos pelos recém-vindos,
uns meio mortos tentavam sair de rastos
e eram então despachados a golpes de baionetas
ou esmagados a coronhas de espingardas,
um jovem com não mais que dezessete anos
agarrou-se ao algoz
até virem dois outros afrouxá-lo
e ficaram os três todos rasgados
e cobertos do sangue do rapaz.
Às onze em ponto
Começou a incineração dos corpos.
Eis aí a história do assassinato
Dos quatrocentos e vinte homens moços.
**
Cântico da Estrada Aberta
A pé, coração alegre, sigo em direção da estrada aberta,
Sadio, livre, o mundo a minha frente,
O longo caminho marrom a minha frente conduz-me para onde acho que convém.
Daqui para frente, já não peço boa sorte, pois eu mesmo sou a boa sorte,
Daqui para a frente, não mais me queixarei, não mais adiarei, nada mais necessitarei,
Porei fim às lamentações interiores, bibliotecas, críticas lamurientas,
Forte e contente, sigo em direção da estrada aberta.
A terra é suficiente para mim,
Não desejo que as constelações estejam próximas,
Sei que elas estão muito bem onde se situam,
Sei que elas bastam aos que lhes pertencem.
(Até aqui transporto os meus antigos e deliciosos fardos, transporto-os - homens e mulheres - , transporto-os para onde quer que eu vá.
Juro ser para mim impossível libertar-me deles,
Estou deles saturado, e em troca, eu os saturo.)
Tu, estrada por onde entro e olho em redor, creio que não sejas tu quando aqui está,
Creio que existem muitas coisas invisíveis.
, os enfermos, os analfabetos não são repudiados;
O parto, a procura apressada do médico, o indigente andarilho, o bêbado cambaleante, o bando de operários com suas gargalhadas,
O jovem em fuga, a carruagem dos abastados, o almofadinha, o par em fuga para o casamento,
O mercador madrugando, o carro fúnebre, o movimento de mudanças na cidade,
Eles passam, também eu, todas as coisas passam, ninguém pode ser interditado,
Ninguém que não seja aceito, ninguém que não seja querido por mim.
Tu, ar que me ajudas com alento para que eu fale!
Vós, objetos que convocais da difusão meus intentos, dando-lhes forma!
Tu, ó luz que me envolves, e a todas as coisas em tuas ondas delicadas e equânimes!
Vós, veredas esbatidas, nas irregulares depressões à margem dos caminhos!
Creio que preservais, latentes, existências invisíveis, e sois tão queridos para mim.
Vós, avenidas embandeiradas das cidades! vós, guarnições laterais! vós, navios distantes!
Vós, casas enfileiradas! vós, fachadas cheias de janelas! vós, tetos!
Vós, terraços e entradas! Vós cumeeiras e grades de ferro!
Vós, janelas cujos vidros transparentes permitiram ver tantas coisas!
Vós, portas e degraus ascendentes! vós, pisoteados cruzamentos!
De tudo quanto tenha tocado em vós, creio que conservastes algo em vós, e agora quereis comunicar-me o mesmo secretamente,
Dos vivos e mortos povoastes vossas impassíveis superfícies, e os espíritos deles se agradariam de ser evidentes e amáveis a mim.
A terra expandindo-se à direita e à esquerda,
O quadro vivo, cada aspecto com sua melhor luz,
A música vibrando onde á solicitada, e cessando onde não é desejada,
E a alegre voz da estrada aberta, o alegre e suave sentimento da estrada.
Ó via principal por sobre a qual caminho, tu me dizes: Não me abandones!
Tu me dizes: Não te aventures, pois se me deixares, estarás perdido!
Tu me dizes: Já estou preparada, bem pisada e jamais recusada, adere a mim!
Ó estrada aberta, respondo-lhe que não temo deixar-te, embora amando-te,
Tu me exprimes melhor do que posso eu exprimir-me,
Serás para mim mais do que meu poema.
Penso que os feitos heróicos foram todos concebidos sob o céu aberto, e também todos os poemas livres.
Penso que poderia fazer uma parada aqui e operar milagres,
Penso que gostarei de tudo quanto encontrar pela estrada,
Penso que todos quantos eu vir, devem ser felizes.
Desta hora em diante, ordeno a mim mesmo que me liberte de limites e linhas imaginárias,
E, como meu próprio senhor total e absoluto, caminharei para onde eu quiser,
Ouvindo os outros, considerando bem o que eles dizem,
Parando, investigando, recebendo, contemplando,
Gentilmente, porém com irrecusável vontade,
Despindo-me dos embaraços que me poderiam entravar.
Sorvo grandes tragos de espaço,
O leste e o oeste são meus, e o norte e o sul também me pertencem.
Sou mais extenso, melhor mesmo do que pensava,
Não sabia que em mim havia tanta bondade.
Tudo parece belo para mim,
Posso repetir a homens e a mulheres, pois tanto bem tendes feito a mim que eu gostaria de fazer o mesmo a vós,
Recolherei para mim mesmo e para vós, quando caminhar,
Disseminarei a mim mesmo entre homens e mulheres quando caminhar,
Espalharei uma nova alegria e rudeza entre eles,
E se alguém me negar, não me preocupará isso,
Pois quem quer que me aceite será abençoado e me abençoará.(...)
Vamos! Quem quer que sejais, vinde peregrinar comigo!
Peregrinando comigo, encontrareis o que jamais se cansa,
A terra jamais se cansa, a terra é rude, quieta, incompreensível a princípio, a Natureza é rude e incompreensível a princípio,
Não vos desencorajeis, persisti, pois existem coisas divinas muito ocultas,
Asseguro-vos que existem coisas divinas mais belas do que as palavras podem descrever.
Vamos! não devemos parar por aqui,
Por mais doces que sejam estas coisas armazenadas, por mais conveniente que esta morada pareça, não podemos deter-nos aqui;
Por mais seguro que seja este porto e por mais calmas que sejam estas águas, aqui não devemos ancorar;
Por mais acolhedora que seja a hospitalidade em nosso redor, é permitido a nós recebê-la por um lapso de tempo.
Vamos! os estimulantes serão maiores,
Navegaremos pelos ínvios mares selvagens,
Iremos para onde os ventos sopram, e as ondas se arremessam, e o veleiro yankee se acelera sob velas soltas.
Vamos! com poder e liberdade, a terra e os elementos,
Saúde, altivez, jovialidade, auto-estima, curiosidade;
Vamos! para além de todas as formas!
Para além de vossas fórmulas, ó sacerdotes materialistas com olhos de morcego.
O cadáver putrefato bloqueia a passagem - não muito longe aguarda o sepultamento.
Vamos! antes, porém, tomai o aviso!
Aquele que comigo segue necessita do melhor sangue, músculos, resistência,
Ninguém se atreva a acompanhar-me, mulher ou homem, se não trouxer consigo coragem e saúde,
Não chegueis aqui, se já tiverdes gasto o melhor de vós mesmos,
Somente podem vir aqueles que venham com o corpo saudável, e resoluto,
Nem os enfermos, nem os alcoólatras, nem os deteriorados terão acesso aqui.
Eu mesmo e os meus não convenceremos com argumentos, símiles, rimas,
Nós nos convenceremos apenas com a nossa presença.
Ouvi! serei honesto convosco,
Pois eu não ofereço os velhos e refinados prêmios, mas ofereço novas e árduas recompensas,
Estes são os dias que vos sobrevirão:
Não acumulareis aquilo que se chama riqueza,
Dissipareis com generosa mão tudo quanto conseguirdes ou ganhardes
Apenas chegados à cidade para a qual tenhais sido destinados, dificilmente instalar-vos-ei satisfatoriamente, antes que sejais convocados por irresistível partida,
Tratareis com risos irônicos e zombarias aqueles que permanecem por detrás de vós:
Sejam quais forem os acenos de amor que receberdes, somente respondereis com apaixonados beijos de despedida,
Não permitireis o controle por parte daqueles que estendem suas astutas mãos para vós.
**
Não Chamo Um o Maior e Outro o Menor
Não chamo um o maior e outro o menor,
Quem quer que preencha o seu período de tempo
e lugar é igual a qualquer outro.
Meus signos são uma capa à prova de chuva, bons
calçados e um bordão colhido nos bosques.
Nenhum dos meus amigos busca descanso em
minha cadeira.
Não possuo cadeira, nem igreja, nem filosofia,
Não conduzo homem algum à mesa do jantar,
biblioteca ou casa de câmbio,
Mas conduzo cada um de vós, homem ou mulher,
para o alto de um outeiro
Minha mão esquerda prende-vos pela cintura,
Minha mão direita aponta em direção de
continentes e estrada aberta.
**
CANTO DO UNIVERSAL
1
Vem, disse a Musa,
Canta para mim um canto que nenhum poeta ainda cantou,
Canta para mim o universal.
Nesta larga terra nossa,
Em meio à desmedida vulgaridade e à escória,
Encerrada e segura em seu coração central,
Aninha-se a semente da perfeição.
Uma parte, maior ou menor, para cada vida,
- Nenhuma vida nasce, sem que ela haja nascido - oculta ou à mostra a semente espera
Vede! A torreante ciência de olhos agudos,
A modernidade contemplando como do alto dos picos,
A dizer fiats sucessivos e absolutos.
Vede, contudo, a alma acima de toda ciência:
Para ela a história juntou como cascas em redor do globo,
Para ela todas as miríades de estrelas giram através do céu.
Em rotas espiradas, com longas voltas,
(Como um navio que muito muda de curso no mar,)
Para ela o parcial flui rumo ao permanente,
Para ela o real busca o ideal.
Para ela é que se dá a evolução mística,
Não apenas o correto se justifica, o que chamamos mal também se justifica.
Saindo das máscaras, não importa quais,
Do grande tronco a apodrecer, da astúcia, do logro e das lágrimas
A saúde e a alegria, a alegria universal.
A originar-se da parte principal, do mórbido e do raso,
Da maioria má, das várias e incontáveis fraudes dos homens e dos Estados,
Elétrico, antisséptico, penetrando, cobrindo tudo,
Somente o bem é universal.
3
Sobre a doença e a aflição que crescem na montanha,
Um passarinho jamais apanhado está pairando, pairando para sempre,
Alto no ar mais puro, mais feliz.
Da nuvem mais escura da imperfeição,
Sempre dardeja um raio de perfeita luz,
Um lampejo da glória celestial.
Para a discórdia da moda, do costume,
Para o doido barulho de Babel, as orgias ensurdecedoras,
Suavizando cada bonança uma canção se escuta, escuta-se apenas,
Dalguma praia distante soando o coro final.
Oh! Os olhos abençoados, os corações felizes,
Que vêem, que conhecem o fio condutor, tão fino,
Através do poderoso labirinto.
E tu, América,
Para a culminação do plano, sua idéia e sua realidade,
Para isso (e não para ti mesma) tu chegaste.
Também tu abranges tudo,
Abraçando, levando, acolhendo tudo, tu também, por largos e novos caminhos,
Diriges-te para o ideal.
As fés comedidas de outras terras, as grandezas do passado,
Não são para ti, mas tuas próprias grandezas,
Mas fés e amplitudes divinizantes, absorvendo, compreendendo tudo, Tudo podendo ser escolhido por todos.
Tudo, tudo para a imortalidade,
O amor como a luz silenciosamente envolvendo tudo,
O aperfeiçoamento da natureza abençoando tudo,
As flores, os frutos das idades, pomares divinos e certos,
Formas, objetos, crescimentos, humanidades, amadurecendo em imagens espirituais.
Dá-me, ó Deus, que cante aquela idéia,
Dá-me, dá àquele ou àquela que estimo esta fé inextinguível,
Em Tua totalidade, o que quer que seja recusado não nos recuses,
A crença em teu desígnio envolto em Tempo e Espaço,
Saúde, paz, salvação universal.
É um sonho?
Não, mas sua falta é o sonho,
E, à sua falta, a sabedoria e a vida e a riqueza serão um sonho;
E o mundo inteiro um sonho
**
OUÇO O CANTO DA AMÉRICA
Ouço o canto da América, as diferentes canções escuto,
As dos mecânicos, cada qual cantando a sua, como deveria ser, alegre e forte,
O carpinteiro a cantar a dele, enquanto mede prancha ou viga,
O pedreiro a erguer sua canção, enquanto se prepara para o trabalho ou deixa o trabalho,
O barqueiro a cantar o que lhe ocorre no barco, o marinheiro a cantar no tombadilho do navio,
O sapateiro a cantar sentado no banco, o chapeleiro a cantar de pé,
O canto do lenheiro, do lavrador a caminho, pela manhã, ou na pausa do meio-dia ou ao pôr do Sol,
O delicioso canto da mãe, ou da jovem esposa a trabalhar, ou da moça costurando ou lavando,
Cada qual cantando o que se refere a ele ou a ela e a ninguém mais,
De dia o que pertence ao dia - de noite a reunião de jovens companheiros, robustos, cordiais,
A cantar, descerrados os lábios, suas canções fortes e melodiosas
**
Ouço dizer que contra mim foi alegado
Ouço dizer que contra mim foi alegado
que eu procurava destruir instituições,
mas em verdade eu nada tenho contra
nem a favor das instituições
- que tenho eu afinal a ver com elas
ou com a destruição delas?
Tudo o que eu quero é fundar
em Mannahatta em toda e qualquer cidade
destes Estados, litorâneos ou do interior,
e pelos campos e bosques,
e em qualquer barco de quilha pequena ou grande
singrando quaisquer águas,
sem edifícios ou regras ou fiadores
ou qualquer tipo de argumentação,
a formidável instituição
do amor entre camaradas.
**
Quando analiso a conquistada fama
Quando analiso
a conquistada fama dos heróis
e as vitórias dos generais,
não sinto inveja desses generais
nem do presidente na presidência
nem do ricaço em sua vistosa mansão;
mas quando eu ouço falar
do entendimento fraterno entre dois amantes,
de como tudo se passou com eles.
de como juntos passaram a vida
através do perigo, do ódio, sem mudança
por longo e longo tempo atravessando
a juventude e a meia-idade e a velhice
sem titubeios, de como leais
e afeiçoados se mantiveram
- aí então é que eu me ponho pensativo
e saio de perto às pressas
com a mais amarga inveja.
**
Quero fazer os poemas das coisas materiais
Quero fazer os poemas das coisas materiais,
pois imagino que esses hão de ser
os poemas mais espirituais.
E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade."
"E à raça humana eu digo:
-Não seja curiosa a respeito de Deus,
pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso a respeito de Deus.
Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho..."
Ora, quem acha que um milagre alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres...
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- existirão milagres mais estranhos?
**
Um mundo
Onde os homens e mulheres não levem as leis a sério,
Onde o escravo deixe de existir, e o amo dos escravos,
Onde o populacho se levante imediatamente contra a eterna audácia dos privilegiados...
Onde as crianças aprendam a operar por conta própria, e a depender de si mesmos,
Onde a equanimidade se reflita em fatos,
Onde as especulações sobre a alma sejam estimuladas,
Onde as mulheres caminhem em procissão pública nas ruas da mesma forma que os homens,
Onde participem na assembléia pública e tomem seus lugares da mesma forma que os homens...
As formas primordiais surgem!
Formas da democracia total, resultado de séculos,
Formas que projetam inclusive outras formas,
Formas de turbulentas cidades masculinas,
Formas dos amigos e anfitriões do mundo,
Formas que abraçam a terra, e são abraçadas por toda a terra.